Mais de 55% das grávidas brasileiras têm seus filhos por meio de cesareanas. A Organização Mundial da Saúde considera saudável ter até 15% desses procedimentos por ano. Por aqui, a taxa chega a 88% na rede privada de saúde, campeã mundial dessas cirurgias. Segundo especialistas, cesáreas feitas sem necessidade são um dos casos típicos de violência obstétrica.
Mas esse tipo de agressão à mãe e ao bebê pode começar no pré-natal, acontecer na hora do parto, pelas consultas de pós-parto e em modos psicológicos, verbais e físicos. Uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo, “Mulheres nos espaços público e privado brasileiros”, feita em 2010 com mulheres que tiveram filhos de parto normal pelo SUS e pela rede privada, mostra que uma em cada quatro mulheres são vítimas dessa violência. Os números, além de não terem melhorado significativamente nos dias de hoje, são ainda mais assustadores quando olhados com lupa. É o que garante, por exemplo, a bióloga Ligia Moreiras Senas, doutora em saúde coletiva, e consultora do filme "O Renascimento do Parto".
Um tema que dá filme
O filme, que tem três partes, e cuja última deve passar em diversos cinemas do país, traz depoimentos de casais anônimos e famosos, caso dos globais Serginho Groisman, Marcio Garcia e Fernanda Lima, e se dedica a mostrar o contraste entre relatos traumáticos de mulheres que sofreram violência obstétrica e o retorno aos métodos ancestrais e menos invasivos na hora do parto.
“Não se trata de coisa de místico, louco, de ‘maluco pode crer’, mas de evidências científicas que comprovam que existem procedimentos médicos totalmente dispensáveis e que desprezam o protagonismo e a participação da mulher, seu bem-estar e o do bebê na hora do parto”, diz o diretor do filme, Eduardo Chauvet.
Numa das cenas, uma mulher que está em pleno trabalho de parto diz ao marido: "Acho que estou com tesão".
Ela grita e sorri, tudo misturado. O homem pede para lhe dar um beijo. Uma parteira e uma doula ajudam no nascimento do bebê na residência do casal. E tudo é captado pelas lentes sensíveis de Chauvet.
Dados são ainda mais assustadores A bióloga Ligia Moreiras Senas, doutora em saúde coletiva, garante que o número mostrado pela pesquisa da Fundação Perseu Abramo é, na realidade, ainda mais preocupante. “Ele não representa a vida real porque mais da metade dos nascimentos ocorre por cirurgia cesariana, e nelas também existe violência obstetrícia. Ou seja, o número de vítimas é muito maior”, pondera a especialista.
"Na hipótese de se incluir tanto as mães que passaram por parto normal quanto as que se submeteram a cesáreas, estima-se que duas em cada três mulheres tenham sofrido algum tipo de violência obstétrica", afirma Ligia, que criou a plataforma colaborativa “Cientista Que Virou Mãe”, espécie de revista digital com conteúdo feito exclusivamente por mulheres mães.
Hoje, oito anos depois dos índices publicados pela pesquisa, ainda não há uma atualização nacional sobre o tema. Apesar disso, para a pesquisadora, há alguns indicadores de melhoria no cenário. “O motivo é o ativismo e cyberativismo das mulheres mães, dos profissionais da saúde e da formulação de novas políticas públicas”, conclui.
O que configura violência?
“Muitas mulheres só se dão conta que foram agredidas algum tempo depois, e outras tantas nem sabem reconhecer que foram vítimas de violência e naturalizam o sofrimento. E a maior parte delas é adolescente", diz Débora Rosa, que é obstetra, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista em parto humanizado e ginecologia natural.
"Nossa formação é intervencionista. Precisamos desconstruir os aprendizados da faculdade e enxergar os problemas que estão acontecendo”, fala a médica. “Alguns profissionais trabalham no automático, por causa de formação antiga, falta de bom senso e plantões sobrecarregados”.
Os casos mais evidentes são xingamentos, recusa no atendimento e a elaboração de procedimentos não necessários, como constantes exames de toque e a episiotomia (incisão na região do períneo, entre a vagina e o ânus, para ampliar o canal de parto) sem o consentimento da paciente.
Também são consideradas violência a lavagem intestinal e restrição de dieta, ameaças, gritos e piadas, omissão de informações, desconsideração dos valores culturais das gestantes, divulgação pública de informações que possam insultar a mulher e não permitir acompanhantes no parto - sendo esta questão, em específico, protegida pela Lei 11.108, de 2005 - e o não recebimento de ajuda para alívio da dor.
Famosos dão depoimento para filme
O filme do diretor Eduardo Chauvet traz depoimentos de vários famosos e também de pessoas anônimas. Para muitos deles, os vários graus de violência obstetrícia pioram o quadro de partos prematuros, desmames precoces, vínculo complicado da mãe com o bebê e a depressão pós-parto.
O apresentador Serginho Groisman e sua mulher, a dentista Fernanda Molina, fazem parte deste terceiro documentário e contam como o prazer esteve vinculado ao momento do nascimento de seu filho Thomas, hoje com três anos. “Ele nasceu em um parto humanizado e mamou por 45 minutos assim que nasceu, sem passar pelo berçário”, conta o apresentador. Sua esposa completa: “Thomas não foi pinicado, furado e nem manipulado até parar de mamar. Ficou comigo por 48 horas em contato pele a pele. Pra que esse negócio de deixar a criança em observação depois que nasce? Observando o quê?”. Para o casal, todos esses cuidados resultaram num bebê extremamente tranquilo.
No primeiro episódio da série, lançada em 2013, ano em que o documentário foi o segundo mais assistido do Brasil, o ator e apresentador Marcio Garcia conta sobre a experiência dos partos de sua esposa, a nutricionista Andréa Santa Rosa Garcia. Mãe de quatro filhos, o primeiro deles veio de uma cesárea, mesmo contra a vontade de Andréa, que acabou realizando a cirurgia por pressão de sua obstetra.
A atriz Fernanda Lima é a convidada do segundo documentário e relata que, contrariando a maior parte dos casos no Brasil, teve parto normal de gêmeos - que nasceram de 39 semanas. “Se eu pudesse voltar naquele dia, a única coisa que mudaria seria a anestesia. Faria sem (porque) perdi os movimentos das pernas, e aquilo foi muito complicado para mim”, conta a praticante de ioga e diversos esportes.
A indústria lucrativa das cesáreas
Uma equipe particular de médicos que realizam parto normal ou cesariana custa normalmente de R$7 mil a 25 mil, e conta geralmente com o trabalho de dois obstetras, um pediatra e um anestesista.
Se o parto, de outro modo, acontece por meio de convênio médico, a parturiente paga somente o anestesista, algo em torno de R$ 1.500 a R$ 3 mil, e o convênio médico cobre todo o resto. A empresa repassa para o obstetra principal cerca de R$ 400 a R$ 1.000, mais R$ 150 por hora, pelo chamado 'auxílio à parturiente', que só é contado até a sexta hora; depois disso, ele não recebe mais nada'”, explica a médica Débora Rosa. O segundo obstetra ganha entre R$ 200 a 400, e o pediatra, entre R$ 350 a 700.
Uma cesariana costuma levar cerca de uma hora para ser feita. O parto normal pode durar 10, 12, 14 horas, e os médicos precisam ficar à disposição da parturiente. “Enquanto nós, do parto humanizado, fazemos cinco partos por mês, um médico de cesareanas pode realizar dez em um dia”, informa Débora. Para ela, essa "agenda" de cesáreas gera uma indústria extremamente lucrativa para médicos e convênios.
As intervenções mais questionáveis
Procedimentos obstétricos salvam vidas. O problema está no excesso, na implementação de protocolos generalizados e na má utilização das práticas. Além das cesáreas desnecessárias, entre as principais intervenções não obrigatórias estão:
Uso da ocitocina artificial: o corpo produz naturalmente esse hormônio, que induz o trabalho de parto e a dilatação. Junto com outras dezenas de composições químicas para o parto também são liberadas enzimas que amenizam as dores. “São reações em cascata. Mas é rotina a gestante chegar nos hospitais e imediatamente receber o ocitocina artificial no soro. O procedimento pode provocar dores insuportáveis”, conta a doula Elis Teixeira. O uso exagerado do medicamento pode causar ainda hemorragia pós-parto, dificuldades na oxigenação e danos cerebral no bebê. O trabalho de parto tem seu tempo: o tempo do bebê e o do corpo da mãe. Para evitar o uso do medicamento, a gestante precisa esclarecer a negativa por escrito.
Episiotomia: além de ser um tipo de mutilação sexual, o corte entre o ânus e a vagina costuma ser feito sem aviso prévio ou autorização da paciente. A cicatrização tende a ser demorada e as cicatrizes podem gerar dores e insensibilidade nas relações sexuais.
Aplicação de nitrato de prata: a substância serve para auxiliar na prevenção de conjuntivite em bebês cujas mães tenham, por exemplo, gonorreia ou clamídia. Mas o produto químico deve ser utilizado com cautela, pois pode ter o efeito contrário, causar conjuntivite, além de grande irritação nos olhos e dor no recém-nascido.
"Agressão assistida"
A estudante paulistana Nathalia Gomes, de 19 anos, teve seu bebê aos 14. Dois meses antes do nascimento, por causa de um deslocamento da placenta, precisou ser internada. No hospital-escola onde ficou - e que prefere não dar o nome - testemunhou agressões verbais e psicológicas de profissionais da saúde às gestantes. "Vi até médico derrubar bebê no chão!", lembra. "Quando minha bolsa vazava, por causa de complicações, os estudantes de medicina me olhavam com nojo, duvidavam de mim e diziam que eu tinha urinado", descreve a estudante, que nomeia as cenas como "agressões assistidas". Além disso, Nathalia diz que alunos a tocavam com frequência para estudá-la "mesmo sendo menor de idade e sem acompanhante". Na hora, você deixa rolar. Mas depois, percebe o quanto foi humilhante. Era um descaso total". Diante das dificuldades da gravidez, os médicos tentaram induzir seu parto durante três dias. Ao final, fizeram uma cesárea. Ela descreve cenas de horror: "minha mãe foi proibida de presenciar o nascimento do neto e tive tanto medo que nem conseguia respirar. porque a anestesia demorou para fazer efeito e, quando pedi para o médico parar, ele ignorou".
"Foi uma tortura"
Ao dar entrada num hospital público da zona leste de São Paulo para o parto de sua segunda filha, aos 41 anos, a operadora de telemarketing Marilda Arruda deu de cara com uma briga entre uma mãe e uma médica. "Fui testemunha de pratos de comidas pelos ares, mas fui pressionada a assinar documentos defendendo a profissional, mesmo sendo eu também, destratada por ela. Eu estava nas mãos dela". A situação ficou ainda mais tensa quando a bolsa teimou em não romper. "A enfermeira me arrancou com força da maca, pelo braço, e eu mal conseguia andar de dor." Após a cesárea, Marilda diz que passou por um procedimento de limpeza uterina, a sangue frio, sem anestesia. Essa espécie de curetagem é extremamente dolorosa e o recomendado é que a mulher esteja sedada ou anestesiada. Ainda assim, é possível sentir desconforto abdominal por cerca de dez dias. Marilda precisou ficar em observação para verificar a possibilidade de hemorragia. O hospital a colocou no meio de um corredor e numa maca tão pequena, que ela tinha "medo da bebê despencar". Ela acredita que a experiência traumatizante teve relação com a depressão pós-parto que ela desenvolveu.
Como evitar
Informação é quase tudo
Pesquise sobre seus direitos e converse com outras mães. Uma boa fonte de informação é o site da Artemis (artemis.org), ONG que é referência para a promoção da autonomia feminina e prevenção da violência contra as mulheres.
Há ainda diversos filmes que circulam entre os grupos de doulas do Brasil. Entre eles estão:
"O Renascimento do Parto 1": Primeiro filme da série, que traz informações e relatos sobre a obstetrícia no Brasil
"O Renascimento do Parto 2": Mostra estudo sobre o alto índice de cesareanas e partos com intervenções traumáticas praticadas no Brasil
"A Dor do Parto": Traz o relato de 12 mulheres que pariram naturalmente. Eles mostram a relação de cada uma com a dor que, nem sempre, significa sofrimento
"Nascer no Brasil: cesárea, mitos e riscos": Tem o objetivo de conscientizar e romper com mitos enraizados sobre parto cesariano
"Aquela que serve -- Documentário sobre Doulas": Mostra o papel da profissional no auxílio à gestante e explica o dia-a-dia dessa profissão
Tenha um Plano de Parto
Ainda pouco conhecido, este é um documento que registra tudo o que a gestante permite ou não que seja feito na hora do parto. Deve ser escrito ao longo da gravidez e com a participação do obstetra. A mulher pode, por exemplo, manifestar o desejo de não ser induzida com ocitocina artificial, poder andar livremente pelo quarto, parir na posição que seja de seu agrado etc. É a melhor maneira de evitar intervenções desnecessárias.
"O código de ética médica proíbe que o médico faça qualquer procedimento sem a prévia autorização, principalmente quando se trata de intervenção cirúrgica. Quando você tem um plano pessoal protocolado, está avisando o que não quer que seja feito. Esse plano também pode ser reutilizado para partos futuros, para que a gestante não tenha o trabalho de refazê-lo se quiser ter mais filhos", explica a advogada Ana Lúcia Keunecke, em entrevista no filme "O Renascimento do Parto 2". "Trata-se de um documento que garante à mulher o direito de exercer um direito que ela já tem e lhe é tirado pela sociedade".
"Foi poético"
A doula Larissa Lima, de 23 anos, responsável pelo Instablog “Mama Eco”, que mostra o cotidiano da profissão, conta que foi no momento de seu próprio parto humanizado que percebeu o quanto o papel das doulas é importante. “No hospital, senti olhares atravessados, houve briga com funcionários que questionavam a presença da minha doula. Mas aos poucos, ela e o meu marido me trancaram na ‘partolândia’, um quarto aonde só existia eu, Maria (a filha) e a dor! Eles me ajudaram a lidar com as contrações e Maria chegou ao mundo de forma natural, sem violência obstetrícia, à meia-luz e ao som de Nando Reis. Foi poético. A médica apenas assistiu o parto, porque afinal, quem faz parto mesmo, é a mulher!”, diz Larissa.
Tanto Elis quanto Larissa reconhecem que nos últimos cinco anos houve avanços sobre a conscientização do parto por parte das mulheres e mais aceitação dos médicos no acompanhamento das doulas no parto. “Não disputamos espaço com eles. Temos outro papel”, analisa Elis. “Alguns profissionais sugerem apenas a posição litotômica [deitada] para a mulher parir, nós estimulamos a mulher a ficar na posição que ela achar mais confortável porque acreditamos que essa é a melhor pra ela” completa. Larissa arremata: “a partir de resultados positivos dos nossos trabalhos, aos poucos, estamos sendo reconhecidas.”
Ainda há muito a conquistar
Ainda hoje vários hospitais em São Paulo que barram a entrada de doulas. “Mesmo com uma lei municipal que nos permite estar no parto, muitas maternidades alegam não terem estrutura física para nos receber”, lembra Elis, que já passou dois dias revezando uma cadeira com o marido de sua paciente, numa sala de pré-parto. “Estrutura física não deve ser motivo para permitir ou não a entrada de uma profissional que oferece um apoio importante durante a gestação, o trabalho de parto e o pós-parto”.
Além de orientar sobre violências e procedimentos desnecessários, as doulas garantem que sua atuação melhora o fluxo no sistema de saúde, as doulas garantem que sua atuação melhora o fluxo no sistema de saúde, barateia custos e promove mais bem-estar às mães e aos bebês, especialmente, nas periferias. “Chega uma mulher negra sozinha no hospital e vem aquela velha historia: ‘ela é forte, ela aguenta mais’. Infelizmente vejo isso acontecer”, diz Elis.
No Brasil, 60% das vítimas de mortalidade materna são negras (pretas e pardas), segundo dados do Ministério da Saúde. Além disso, cerca de 62% das pretas e pardas atendidas pelo SUS foram orientadas sobre amamentação, enquanto 78% das brancas receberam esse serviço.
Assim como Elis e Larissa, boa parte das doulas faz trabalho voluntário para gestantes e adolescentes da periferia de São Paulo. Elas contam que nunca deixaram de atender uma mulher por questões financeiras e sempre buscam acordos. O investimento em uma doula custa em média R$ 1.500.
Como processar
O plano de parto é sempre uma proteção para a mulher. Caso o hospital se negue a segui-lo ou faça intervenções sem comprovação da necessidade ou risco de vida, a mulher pode entrar com uma ação criminal, abrir uma denúncia na Secretaria de Saúde ou entrar com processo no Ministério Público. Também é possível processar profissionais responsáveis.
O Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (NUDEM) recomenda exigir do hospital a cópia do prontuário de atendimento, direito de toda paciente, fazer denúncia na Defensoria Pública do Estado – independentemente se a violência ocorreu em serviço público ou privado. Outra orientação é procurar os conselhos de classe das categorias profissionais, como o Conselho Regional de Medicina (CRM) ou o Conselho Regional de Enfermagem (COREN) e relatar o caso ao serviço telefônico 180, que trata de violência contra a mulher, e ao Disque Saúde 186.
Fonte: https://universa.uol.com.br/especiais/violencia-obstetricia/index.htm#nao-a-violencia-obstetrica
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